"A gramática deve sofrer"

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Acha que Brasil e Portugal, como já escreveu, continuam a ser dois países separados pela mesma língua?

De certa maneira, sim. Nós temos línguas parecidas. Senti isso agora, no Porto. Levaram-me à televisão para dar uma entrevista e eu simplesmente não entendi as perguntas, respondi como pude...

Mas ainda é a mesma língua?

São línguas parecidas (risos). Mas isso não é razão para nos separar.

O que existe é falta de informação ou mesmo vontade de saber mais?

Também. As nossas relações, desde o tempo em que nós éramos a colónia e Portugal a metrópole, sempre foram especiais, não necessariamente no bom sentido. A emigração portuguesa para o Brasil inclusive deu razão para se formar uma caricatura dos portugueses sem muitas luzes... completamente injusta. Todos estes anos passados, ainda continua esta relação, assim de colónia e metrópole, de um certo desentendimento...

Mas a imagem de Portugal continua a mesma de há trinta anos, das mulheres de bigode?

É, da anedota... continua um pouco. Portugal mudou muito, é só as pessoas se informarem um pouco e essa caricatura não resiste, mas continua um pouco assim.

O que é que conhece da literatura portuguesa, tirando naturalmente os clássicos?

Claro que li Eça de Queirós, etc. Hoje, leio Saramago, Lobo Antunes, mas não leio muito mais do que isso. O meu álibi é que até da literatura brasileira eu conheço pouco, tenho lido pouco por prazer. Leio mais para me informar, jornais e revistas, para o meu ofício. Até de escritores novos brasileiros eu conheço pouco.

E gosta de Saramago e Lobo Antunes?

Sim, sim, gosto dos dois.

E, aí, a língua não é obstáculo?

Não... às vezes temos de fazer um certo esforço, mas vale a pena.

Carrega consigo um apelido que lhe trará responsabilidades especiais. Nunca sentiu o peso desse apelido, de ser filho de quem é [Erico Veríssimo, grande escritor brasileiro]?

Eu comecei a escrever tarde, com 30 anos. Não tinha nenhuma ideia de ser escritor. O facto de ser filho de escritor com notoriedade talvez me tenha inibido. Mas quando eu comecei, o sobrenome só ajudou, despertava curiosidade das pessoas, abria algumas portas.

Mas não era muito responsabilizador?

Não, porque o que eu fazia e o que faço é um pouco diferente. O meu pai sempre foi um romancista. Eu continuo a fugir da comparação, não sei se inconscientemente...

Uma vez definiu-se como um gigolo das palavras. O que é isso?

É viver das palavras, como eu faço, como jornalista e como escritor. E usá-las sem muito respeito, no sentido de usá-las para comunicar, para ser claro, e não tanto para ter respeito pela gramática, no sentido em que esta, às vezes, dificulta. Escrever correctamente, por vezes, não quer dizer escrever certo.

O respeito pela correcção da escrita não deve fazer parte do ofício?

Sim, mas quando se chega a um ponto de escolher entre a clareza e a correcção gramatical, eu acho que a gramática deve sofrer. Não estou a pregar que se escreva mal, mas acho que a prioridade é a clareza e a criatividade. Às vezes, a maneira de ser criativo é desrespeitar um pouco essas regras.

Como é que se sente como o autor mais vendido do Brasil, superando mesmo o Paulo Coelho?

É bom saber que estamos a ser lidos. Mas não devemos ficar deslumbrados. Hoje é assim, amanhã pode não ser. Há que ter um certo realismo. Mas é muito bom.

É leitor do Paulo Coelho?

Não, confesso que nunca li nenhum livro do Paulo Coelho e não poderia dar uma opinião, mas é um nome mundial. Alguma coisa há-ter ter, não pode estar o mundo todo errado...

Mas nunca teve curiosidade em ler?

Na verdade, esse tipo de literatura de auto-ajuda, meio mística, não é a minha praia...

Então, também não pensa candidatar- -se à Academia Brasileira das Letras?

Eu? Não. Não tenho esse temperamento. Nem tenho físico para vestir aquele fardão...

Sabe quem é o gaúcho mais conhecido em Portugal, neste momento?

O Luiz Felipe...[Scolari]?

Conhece-o?

Tivemos bastante contacto no último Mundial. Eu sempre o defendi, ele foi muito criticado... Representa muito o futebol do Rio Grande do Sul, o futebol gaúcho, mais combativo. No Rio e São Paulo gostam do futebol mais bonito.

Em Portugal, há sempre alguma reserva de alguns intelectuais que acham que falar sobre futebol é desqualificante. Não é essa a sua opinião, presumo?

Não. O futebol é uma coisa fascinante, uma experiência de vida. Tivemos grandes escritores a escrever sobre futebol, o Nélson Rodrigues, o Mário Filho, o José Roberto Torero escreve uma coluna sobre futebol. Não acho que seja menor. Dá assunto para escrever vários tipos de comentário, às vezes até comentário político. O universo que se movimenta à sua volta, o que os estilos de jogar dizem sobre o momento das nações.

O que é que o estilo do futebol brasileiro diz sobre o Brasil?

Ultimamente o que se passou no Brasil foi a vitória desse estilo de futebol que o "Felipão" representa, mais objectivo, que venceu um pouco aquela ideia do brasileiro como o malandro, que preferia jogar bonito do que ganhar. É um pouco o Brasil moderno, vencendo o estereótipo carnavalesco, preguiçoso. De certa maneira, esse novo futebol brasileiro representa esse outro Brasil, que talvez não seja tão pitoresco, tão bonito, tão atraente, mas é mais eficaz.

Mas qual dos dois Brasis é o mais real?

Acho que é esse novo Brasil, esse novo futebol do "Felipão".

Mas é menos romântico?

Certamente menos romântico. Sempre se romanceou muito o morro no Rio de Janeiro, o malandro que vivia na favela vivia mais perto do céu. Essa ideia romântica do morro perdeu-se completamente. Hoje, o morro é uma ameaça, é narcotráfico. Está a encarar-se a realidade, não se romanceando tanto, encarando a terrível realidade da pobreza. O futebol, de certa maneira, espelha isso...

Então, o Scolari é uma espécie de Palocci do futebol...

(risos) Mais ou menos... Mas essa comparação, eu nunca faria...

Noto-o mais pragmático no futebol do que na política...

É. Talvez essa posição anti-Palocci seja um resquício do romantismo, mas essa analogia é um pouco complicada (risos)...

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